Peter Bonas "Dentro de Eva, Adão vivia feliz num paraíso de entranhas. Preso como a semente na polpa doce do fruto, eficaz como uma glândula de secreção interna, dormitando como uma crisálida no seu capulho de seda, as asas do espírito ampIamente desdobradas. Como todas as criaturas ditosas. Adão renunciou à sua bem-aventurança e se pôs a procurar qualquer saída. Investiu contra a correnteza nas águas densas da maternidade, forçou com a cabeça uma passagem no túnel de toupeira e cortou o liame da sua aliança primitiva. Mas o habitante e a desabitada não puderam viver separados. Aos poucos eles foram idealizando um cerimonial cheio de nostalgias, pré-natais, um ritmo obsceno e íntimo que devia começar com a humilhação consciente de Adão. Ajoelhado como diante de uma deusa, suplicava e oferecia toda qualidade de presentes. Em seguida, com uma voz cada vez mais urgente e ameaçadora, começava uma justificação do mito do eterno retorno. Depois de se fazer de muito rogada, Eva suspendia-o do chão, esparzia a cinza dos seus cabelos, tirava-lhe as roupas de penitente e o cobria parcialmente com o seio. Aquilo foi o êxtase. Mas o ato de magia imitativa deu péssimos resultados no tocante à propagação da espécie. E em face da multiplicação irresponsável de adões e evas, que traria como conseqüência o drama universal, um e outro foram chamados a prestar contas. (No chão, como um clamor mudo, estava fresco o sangue de Abel) Entre cínica e humilde, Eva se limitou no tribunal supremo a fazer uma exibição mais ou menos velada das suas virtudes naturais, enquanto ia recitando a cartilha da companheira perfeita. As lacunas do sentimento e os hiatos da memória foram admiravelmente compensados por um longo repertório de risinhos, manhas, dengues. No fim, fez uma esplêndida pantomima do parto doloroso. Por sua vez, muito formalista, Adão declamou um resumo extenso de história natural, convenientemente expurgado de misérias, morticínios, traições. Falou do alfabeto e da invenção da roda, da odisséia do conhecimento, do progresso da agricultura, do sufrágio feminino, das guerras de religião, da lírica provençal. . . Sem qualquer explicação, colocou tu e eu como exemplo. Definiu-nos como o par ideal e me tornou um escravo dos teus olhos. De súbito, porém, fez ainda há pouco com que brilhasse esse olhar que, vindo de ti, para sempre nos afasta." Juan José Arreola (México- 1918-2001)
Obrigado ao Blog sub rosa (obrigado Meg!), onde estas pérolas se vão descobrindo. |