sexta-feira, março 04, 2005 |
Ana Hatherly em entrevista (continuação 1) |
AMG - Ao lado da faceta irónica da pintora da escrita que Ana Hatherly é, existe um lado quase infantil. Klee vem à memória...
AH - Com a idade que tenho, pergunto-me como consigo, não digo ser infantil, mas ter aquela genuína idade da criança. A tisana dos anjinhos (349) revela-o, porque eu gostava muito de olhar para as nuvens, redondinhas e luminosas, amontoadas por vastas áreas do azul do céu. E uma vez perguntei: «o que é aquilo? São os anjinhos, responderam-me. E eu acreditei porque era verdade.» Só uma criança é capaz de acreditar. Resta-me esse lado infantil, que tem qualquer coisa de puro, mas isso o verdadeiro criador possui; não sei se posso chamar-lhe inocência. Talvez seja uma maneira limpa de olhar para as coisas.
AMG - A sua obra gira em torno da procura do saber. Acha que «a tragédia do homem é o conhecimento», como escreveu Cioran?
AH - Sou grande leitora e admiradora de Cioran, a quem chamo o meu «primo rigoroso». Quando estive na Roménia, fui à procura dos seus vestígios. Li-o sempre atentamente. O seu desespero ante o sagrado sempre me tocou muito. Era, se quisermos, um filósofo do desespero, de uma lucidez penetrante e talvez um dos escritores que mais me impressionaram, embora não seja um dos autores da minha formação. Leio prefencialmente História da Filosofia, pouca ficção. «A Montanha Mágica» marcou-me imenso, porém. Também vivi num sanatório. Quando escrevi «O Mestre», Ionesco foi igualmente importante. Tudo passa pela manipulação das palavras, sacralizá-las e dessacralizá-las dir-se-ia um processo fundamental.
AMG - «As palavras aproximam (...)/Ou então não:/matam/afogam /separam definitivamente (...), escreve em «O Pavão Negro».
AH - Esse é o poder superior da palavra. Mas voltando a essa ideia do Cioran de que a tragédia do homem é o conhecimento, eu diria que a tragédia está em não se conseguir conhecimento bastante, desculpa Cioran!...
AMG - Talvez Cioran quisesse dizer que o saber traz consigo a perda de ilusão...
AH - Sim ou não, é como as palavras (risos). Pode ser o acréscimo, mas é preciso passar por esse processo dolorosíssimo. A tragédia do humano tem a ver com a incapacidade de não atingir Deus. Nunca chegamos a saber. Quando se procura muito, se estuda muito, quando se chega lá, vê-se que não é nada daquilo. Esta a lucidez normal do que Cioran pensou, só que o diz elipticamente. Chama-se a isso o pecado original. A árvore do saber... Mas o Homem não soube nada, só soube o mal. Foi castigado. Ninguém consegue saciar o desejo. É o cerne de tudo.
AMG - Klee escreveu que não devemos ter medo de nos vermos envolvidos no meio de elementos indigestos. A frase aplica-se-lhe. Entre o doce e o salgado, qual escolhe?
AH - (Risos) Depende das ocasiões. No outro dia na televisão, quando se falava da situação adversa em que a minha obra viveu, durante muitos anos, perguntaram-me quem eram os meus pares. Meus pares, não, meus ímpares, digo. Esses é que são indigestos. Em relação a Klee, admiro-o imenso, até a dimensão dos seus trabalhos. Fez obras muitos pequeninas. Aprendi imenso com isso e entendi qual o seu constrangimento ao sentir-se limitado num espaço, numa dada situação social. Eu, como ele, tive que lutar muito, o que é visível nas obras minúsculas que fiz. Nelas a escrita dir-se-ia quase ilegível. Só se fazem coisas pequeninas com grande desespero.
AMG - A escrita, o pensamento são somente concebíveis enquanto fragmento? Sob a forma de uma explosão ou não?
AH - É sempre fragmento, a criação, insaciável. Faz parte do desejo.
AMG - Tem ultimamente usado o spray, penetrando no universo dos «graffiti». Interessou-lhe o lado subversivo?
AH - Sim, mas já estou a sair daí. Nos últimos quatro anos, trabalhei com spray. Essa explosão dos «graffiti» de rua tem um carácter clandestino, não tem autor, faz-se em grupo, de noite. É algo que a sociedade contempla como uma mácula. O espírito de equipa, a ideia de subversão e o posicionamento político interessaram-me. Não sigo o mesmo percurso que eles, mas tentei reinventar os «graffiti», que são sempre assinatura, voz de alguém. Já domino a técnica, por isso não me interessa mais. Posso usá-la ou não. O importante é tomar posição na altura certa. No momento em que os «graffiti» são proibidos, eu faço!, cumprindo um sentido de transgressão... É o mestre que eu quero matar.
AMG - No seu último livro, «Itinerários», acaba com uma «Carta a Uma Menina que Queria Ser Poeta». É, no fundo uma «Arte Poética»...
AH - Que dedico à Matilde Rosa Araújo. É a «História da Menina Louca» do meu primeiro livro. Não sei escrever para crianças, tenho medo. Não tenho pena nem deixo de ter, não sou capaz. Este é o único exemplo. Talvez porque nunca tenha convivido com crianças na infância. Fui mãe e assustei-me imenso com essa responsabilidade. Tocava piano com a minha filha, que também cantava muito bem. A nossa comunhão era a música.
AMG - Regressando a «Itinerários», vejo-os como um mapa...
AH - São percursos. O primeiro poema di-lo: «Na minha oficina herética/o labirinto contraria o linear:/percorre-me/como se fosse uma veia/segura em seus meandros/A não necessidade, o que seria?/que nova desordem criaria?/que outras descobertas?/A fugaz eternidade das ideias-mestras/incessante refaz os jogos da racionalidade/mas o jogo é um itinerário/e a sedução do rigor/recoloca-nos incessante na senda do desejo» Está aqui tudo, é um auto-retrato. Nada é linear. No barroco, também não. Há meandros. Como seria se não houvesse necessidade? O rigor é muito exigente; há essa sedução. E o desejo, sempre o desejo.
(continua) |
posted by George Cassiel @ 10:22 da manhã |
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GEORGE CASSIEL
Um blog sobre literatura, autores, ideias e criação.
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"Este era un cuco que traballou durante trinta anos nun reloxo. Cando lle
chegou a hora da xubilación, o cuco regresou ao bosque de onde partira.
Farto de cantar as horas, as medias e os cuartos, no bosque unicamente
cantaba unha vez ao ano: a primavera en punto."
Carlos López, Minimaladas (Premio Merlín 2007)
«Dedico estas histórias aos camponeses que não abandonaram a terra, para encher os nossos olhos de flores na primavera»
Tonino Guerra, Livro das Igrejas Abandonadas |
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