quarta-feira, março 30, 2005
"Centenaire de Sartre en 2005" - I
O intelectual dos intelectuais (1)
por Eduardo Prado Coelho, Público de 29 de Março:

Estava na praia, em São Martinho do Porto. Tinha 16 ou 17 anos. Todas as manhãs chegava ao café por volta das nove e meia, com jornais e um livro. Alguns desses livros eram volumosos. Por exemplo, O Ser e o Nada e, mais tarde, a Crítica da Razão Dialéctica, ambos de Sartre. Antes de ir para praia por volta do meio-dia, lia páginas sucessivas, procurando compreender, o que nem sempre era fácil.

Mais tarde, a Europa-América convidou-me a traduzir um dos livros de ensaios, Situações. O que fiz com o prazer de descobrir uma escrita vertiginosa, um sentido da estética da linguagem, embora Sartre visasse mais a transmissão da mensagem do que o prazer do significante. Mas Situações vinha-me explicar que um escritor está sempre no meio da história, confrontado com o conflito essencial da sua época: para ele, a oposição entre socialismo (que em dada altura desastradamente identificou com a URSS) e capitalismo (fundamentalmente, os EUA). Sartre escreve admiravelmente, mas não é com a escrita que se preocupa. Um famoso debate perguntava: "Que é a literatura?" E acima de tudo nós íamos aqui encontrar uma dessas noções que tiveram a sua época: o compromisso - ou, se preferirem, l"engagement. Mais do que o homem da liberdade, o homem em que o para-si fazia sentido libertando-se do em-si, Sartre foi para nós, envolvidos na ideia de esquerda, o homem do compromisso. E nesse sentido foi o intelectual - ou melhor, o intelectual dos intelectuais. O modo siderante como argumentava (e as suas polémicas com Camus, Merleau-Ponty, Aron, ficaram famosas) parecia não ter equivalente. Os livros de filosofia que escrevia pareciam totalizar a cultura e história do seu tempo. A política era nele uma paixão permanente. Nas manhãs de praia, ouvindo o ruído das ondas, tinha a sensação de que ele pensara tudo e de que ele dera um sentido a tudo.

Depois, vieram os tempos das estruturas, isto é, aqueles em que o sujeito não imaginava os possíveis da história, mas aparecia como um efeito de superfície de um processo obscuro em que as marcas do sentido iam operando como se fossem máquinas. Não se falava em sujeitos que desejam, mas em máquinas desejantes. Até que um dia Derrida escreveu sobre Sartre em Les Temps Modernes. E antes Deleuze tinha escrito sobre ele. Michel Foucault tinha declarado numa entrevista de 66 a Madeleine Chapsal: "Fizemos a experiência da geração de Sartre como sendo uma geração certamente corajosa e generosa, que tinha a paixão da vida, da política, da existência. Mas para nós descobrimos outra coisa, uma outra paixão: a paixão do conceito e do que eu chamaria "o sistema"."O que é interessante, e resume a segunda metade do século XX, é que Sartre e Deleuze, e ainda Foucault e por fim Derrida pareçam hoje encontrar-se na figura do intelectual. Mas Sartre foi certamente o intelectual dos intelectuais.
posted by George Cassiel @ 1:26 da tarde  
1 Comments:
  • At 11:41 da manhã, Anonymous Anónimo said…

    Tenho tentado conversar com o Sr. Eduardo Prado Coelho há bastante tempo, mas não consigo seu endereço. Se alguém souber, por favor, envie para: jujacare@hotmail.com
    Obrigado.

     
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"Este era un cuco que traballou durante trinta anos nun reloxo. Cando lle chegou a hora da xubilación, o cuco regresou ao bosque de onde partira. Farto de cantar as horas, as medias e os cuartos, no bosque unicamente cantaba unha vez ao ano: a primavera en punto." Carlos López, Minimaladas (Premio Merlín 2007)

«Dedico estas histórias aos camponeses que não abandonaram a terra, para encher os nossos olhos de flores na primavera» Tonino Guerra, Livro das Igrejas Abandonadas

 
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