quarta-feira, fevereiro 23, 2005 |
Guillermo Cabrera Infante |
Morreu o pastor das palavras Por João Carlos Silva, in Público, 23/02/05
No exílio, criou uma Havana sua e recriou um mundo perdido. O Prémio Cervantes de 1997 era um feroz adversário de Fidel Castro
Emblema do exílio anticastrista, Guillermo Cabrera Infante, escritor, apaixonado pelas palavras, pelo cinema, pela sua Cuba, morreu ontem à noite no hospital londrino de Chelsea e Westminster, onde dera entrada uma semana antes depois de partir a bacia num acidente caseiro. Causa da morte aos 75 anos: septicemia. Viveu mais tempo em Londres, onde se exilou há 40 anos, do que em Cuba, e não cumpriu o sonho-promessa de regressar à ilha depois da morte de Fidel Castro, o seu ódio de estimação. Aquele a quem alguém chamou "o primeiro dos dissidentes do castrismo" morreu, como ele diria, náufrago, a olhar de longe a sua ilha. "Vivo em Inglaterra entre livros, pó e filmes", escreveu. "Saí de Cuba exilado para sempre ou para a eternidade - o que durar menos." Cuba silenciou no imediato a notícia da morte, enquanto em Espanha e na América Latina se sucediam as palavras de homenagem ao "grande pastor das palavras", como disse o ensaísta Enrico Mario Santi. A extensa obra de Cabrera Infante valeu-lhe dezenas de prémios; na prateleira mais alta está o Prémio Cervantes, o "Nobel espanhol", que lhe foi entregue em 1997. O escritor nasceu em 22 de Abril de 1929 em Gibara, no Leste de Cuba, filho de pais remediados e politicamente conscientes: estiveram associados aos primeiros tempos do Partido Comunista. Algo que não escapou ao seu humor ácido: "Creio que cresci sob a ditadura de Estaline, porque os meus pais eram comunistas." Em 1941, a família mudou-se para Havana; em 1950, ele foi estudar jornalismo; em 1951, fundou a Cinemateca de Cuba, a que havia de presidir até 1956. Pelo meio, uma passagem pela prisão por causa de escritos politicamente inconvenientes (1952) e um primeiro casamento (1953). Em 1959, abraçou a revolução liderada por Fidel Castro, algo que, usando sempre os seus jogos de palavras, descreveu como "um barco, que [ajudou] a atirar ao mar, sem saber que era ao Mal". Com Carlos Franqui, fundou nesse ano o diário "Revolución" e o seu suplemento literário "Lunes de Revolución", que ele próprio dirigiu até ao último número, em 1961. Foi um ano com um acontecimento feliz: o do casamento com Miriam Gómez, actriz, que ontem à noite estava ao seu lado no hospital londrino em que morreu. Quando partiu para Bruxelas, em 1962, como adido cultural, agravaram-se as divergências com o regime; a distância, escreveu ele, tornou "a ditadura cristalina". Três anos depois bateu à porta da Espanha do ditador Franco a pedir exílio; foi recusado, adoptou Londres e fez a partir daí o seu combate ao castrismo. Fidel Castro respondeu tornando o seu nome proscrito na ilha, mas isso não impediu que ao longo de décadas ele e as suas obras se tornassem de culto em Cuba. Em meados da década de 90, os "Tigres" em fotocópias eram trocados por latas de leite condensado. Jorge Edwards, o escritor chileno que foi um dos seus maiores amigos, ele próprio Prémio Cervantes em 1999, recordava ontem que ""Três Tristes Tigres" e "La Habana para un Infante Defunto" são duas obras-primas da literatura em espanhol de todos os tempos". "Estilista do idioma", "inventor de palavras", diziam ontem escritores noutras reacções à morte. E "Três Tristes Tigres", que ele escreveu em 1964, era o mais citado dos seus livros. Outras obras maiores são "Vista do Amanhecer no Trópico" (1974), "La Habana para Un Infante Defunto" (1979). "Ela Cantava Boleros" (1996) foi a sua última ficção, mas mais recentemente saíram "O Livro das Cidades" (1999, crónicas de viagem), "É Tudo Um Jogo de Espelhos" (2000, crónicas) e "Fumo Puro" (2000, sobre "charutos, filmes, actores e músicas com fumo"). Quase tudo à volta de um mundo perdido (a Cuba dos anos 40 e 50, a noite, as mulheres, a música, o sexo). Noutro plano ficou essa obra-prima do testamento político chamada "Mea Cuba" (1993), amálgama de avulsos produzidos entre 1968 e 1992 unida pela argamassa do combate à ditadura numa ilha aprisionada por "um sonho que correu mal". Em Cuba, o escritor António José Ponte afirmava ontem ao "Miami Herald", que nesta altura nem os seus maiores inimigos na ilha poderão negar a importância da sua obra. "Cumpriu - disse - um dos maiores sonhos que pode ter um escritor exilado ou simplesmente um escritor: fundou para os seus leitores uma cidade própria, uma Havana sua. Ele era, desaparecidos Carpentier, Lezama Lima, Piñeiro e Arenas, o mais importante dos romancistas cubanos. Agora, com a sua morte, não vejo a quem atribuir esse lugar." "Saí de Cuba a 3 de Outubro de 1965; sou muito cuidadoso com as minhas datas, por isso as conservo. Assim, posso dizer: "No próximo ano em Havana."" Não pôde ser. |
posted by George Cassiel @ 12:18 da tarde |
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GEORGE CASSIEL
Um blog sobre literatura, autores, ideias e criação.
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"Este era un cuco que traballou durante trinta anos nun reloxo. Cando lle
chegou a hora da xubilación, o cuco regresou ao bosque de onde partira.
Farto de cantar as horas, as medias e os cuartos, no bosque unicamente
cantaba unha vez ao ano: a primavera en punto."
Carlos López, Minimaladas (Premio Merlín 2007)
«Dedico estas histórias aos camponeses que não abandonaram a terra, para encher os nossos olhos de flores na primavera»
Tonino Guerra, Livro das Igrejas Abandonadas |
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