terça-feira, novembro 02, 2004
Esboço de uma autobiografia não autorizada de um meu heterónimo que nunca me foi apresentado
Sentia-se apodrecer se estivesse muito tempo no mesmo sítio

as varandas precisam de ter vistas diferentes,

explicava sempre. O mundo que tinha pela frente deveria ser obrigatoriamente variado.
Criou de si próprio a imagem de um artista insatisfeito e errante. O aspecto propositadamente despojado e ausente -

“lunático”,

dizia o seu cartão de visita – ajudou a sustentar o mito do potencial escritor incompreendido. Mas nós continuávamos a acreditar, mesmo que interiormente soubéssemos da farsa que em conjunto tínhamos criado.
Amei-o, é verdade, mas nada do que senti por ele me confundiriam a análise imparcial que faço da sua obra.

as varandas precisam de ter vistas diferentes,

assim era a sua escrita. Uma permanente leitura da realidade com olhos diferentes, como se auto-excluísse da pessoa que era e encarnasse noutro narrador, diametralmente diferente. Amei-o, também por isso.

“Não me recordo de quando comecei a morrer”,

começava o primeiro caderno, cuidadosamente escrito a tinta preta. Naquele dia foi diferente,

olha, este não é o primeiro.

Estão todos numerados,

mas começa por este,

e entregou-me um caderno castanho, bastante usado, não muito grande mas com cerca de duzentas folhas, algumas já soltas ou rasgadas, e por isso se justificava o elástico que o prendia. As condições de conservação não melhoravam à medida que avançávamos na numeração dos cadernos. O seu estado variava aleatoriamente revelando não haver uma ordem cronológica intencional.

“Não me recordo de quando comecei a morrer”,

era a primeira frase daquele caderno, escrita cuidadosamente a tinta preta, na primeira linha da segunda folha.
posted by George Cassiel @ 6:17 da tarde  
1 Comments:
  • At 11:23 da manhã, Blogger hfm said…

    Gostei desta autobiografia, dos seus tempos e das suas palavras entrecruzadas.

    hfm

    http://linhadecabotagem.blogspot.com

     
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GEORGE CASSIEL

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"Este era un cuco que traballou durante trinta anos nun reloxo. Cando lle chegou a hora da xubilación, o cuco regresou ao bosque de onde partira. Farto de cantar as horas, as medias e os cuartos, no bosque unicamente cantaba unha vez ao ano: a primavera en punto." Carlos López, Minimaladas (Premio Merlín 2007)

«Dedico estas histórias aos camponeses que não abandonaram a terra, para encher os nossos olhos de flores na primavera» Tonino Guerra, Livro das Igrejas Abandonadas

 
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