segunda-feira, maio 23, 2005
Faleceu Paul Ricoeur


por Maria joão Caetano, in Diário de Notícias, 22/05/05:

Um pensamento que atravessa todo o século XX

A relação com a História e a memória e o conhecimento que temos de nós próprios são temas fulcrais na obra do pensador francês, que procurava uma "filosofia reflexiva"

O filósofo francês Paul Ricoeur faleceu na madrugada de sexta-feira na sua casa de Chatenay Malabry, na região parisiense. Viúvo e pai de cinco filhos, Ricoeur tinha 92 anos e sofria de doença cardíaca. Intelectual empenhado e um dos maiores pensadores do século XX, a sua obra atravessou todos os grandes temas da filososfia.

As duas grandes guerras foram acontecimentos decisivos na vida pessoal de Ricoeur. Nascido a 23 de Fevereiro, em Valence, ficou órfão muito novo. O pai morreu na Primeira Guerra Mundial, quando Ricoeur tinha apenas dois anos, e ele foi educado por uma tia protestante, que o iniciou no estudo da Bíblia. Foi um jovem intelectualmente precoce, que passava grande parte do seu tempo entre livros. Em 1933 licenciou-se na Universidade de Rennes e, no ano seguinte, iniciou os seus estudos de Filosofia na Sorbonne, em Paris, onde foi discípulo de Gabriel Marcel.

A auspiciosa carreira académica foi interrompida pela Segunda Guerra Mundial. Foi chamado a servir o exército francês mas a sua unidade foi capturada durante a invasão alemã e Paul Ricoeur passou os cinco anos seguintes como prisioneiro de guerra. No campo de prisioneiros conheceu outros intelectuais, como Mikel Dufrenne, com quem organizou várias sessões de leitura e discussão. Foi também durante esse período que leu Karl Jaspers, autor que viria a influenciá-lo bastante, e que começou a traduzir as Ideas de Husserl.

Após a guerra, integrou o comité de redacção da revista Esprit, foi professor de História da Filosofia na Universidade de Estrasburgo (1948-1956) e em 1950 doutorou-se com duas teses (como é hábito em França) uma, mais pequena, precisamente com uma análise das Ideas de Husserl, e outra, mais extensa, sobre a filosofia da vontade, que viria a ser publicada com o título Le Voluntaire et l'Involuntaire. Em 1955 publicou Histoire et Vérité e, no ano seguinte, assumiu a responsabilidade pelo departamento de filosofia da Sorbonne, período que coincidiu com a publicação de algumas das suas obras mais importantes - Essai Sur Freud e La Symbolique du Mal.

Ricoeur foi ainda professor na recém-fundada Universidade de Nanterre (1956-1970), onde procurou escapar à tradição e ao ambiente sufocante da Sorbonne. No entanto, na sequência dos protestos do Maio de 68, Ricoeur, que no início tinha assumido uma posição moderada em defesa dos estudantes, acaba por ser alvo da ira dos jovens ao pedir a intervenção da polícia para manter a segurança no campus. Após os confrontos, demite-se da presidência do "conselho provisório de gestão" da universidade. Profundamente cristão, não marxista e desencantado com a França, em 1970 Paul Ricoeur muda-se para os Estados Unidos e para a Universidade de Chicago, onde fica até 1985. Ausente de todos os debates "revolucionários" dos anos 70, o filósofo continua a trabalhar, preparando a publicação dos três volumes de Temps et Recit.

Em 1990, publica Soi-même comme un autre e, de regresso a França, La Mémoire, l'histoire, l'oubli, onde interroga os historiadores sobre a sua prática. A sua última obra foi L'Hermenéutique biblique (2001). No ano passado, foi laureado com o prémio John W. Kluge, prestigiado galardão americano para as ciências humanas.

"Na linha de uma filosofia reflexiva", segundo as suas próprias palavras, Ricoeur procurava "uma variante hermenêutica da fenomenologia", tentando combinar a descrição fenomenológica com a interpretação hermenêutica, uma vez que não há possibilidade de conhecimento de si mesmo que não seja mediada por signos e símbolos. "Em última análise, o autoconhecimento coincide com a interpretação dada a esses termos mediáticos", escreveu. A sua obsessão com a questão do sentido e da interpretação levou-o a interessar-se também pela psicanálise e pela exegese bíblica, assim como pelo conhecimento histórico e pela narração, à qual consagrou aquela que é a sua obra mais difundida, Temps et Récit (1983-1985). Mas esta reflexão sobre a memória e a fidelidade ao passado fazia-se recorrendo também ao conceito de culpabilidade e de reconciliação com esse passado, introduzindo a questão do perdão.

Pensador engagé, militante socialista desde 1933 , Paul Ricoeur opôs-se a todos os totalitarismos, à guerra da Argélia (1954-1962) e à da Bósnia (1992). Nas suas intervenções mostrava uma preocupação com a justiça e com o "agir ético". Jean-Marie Colombani escreve no editorial de Le Monde que Ricoeur organizava toda a sua reflexão a partir de uma atitude fundamental "dar crédito ao outro, reconhecer em que é que ele tem razão, mesmo quando não partilhamos as suas posições". Também no Libération, Robert Maggiori afirmava ontem que Ricoeur, como todos os grandes filósofos, queria apenas uma coisa "perceber como o homem, na sua fragilidade, mantém o seu esforço de existir e o seu desejo de ser". No mesmo jornal, escreveu Gérard Dupuy: "Não há hiatos entre a vida e a obra de Ricoeur. No pensamento e na acção, uma mesma exigência incessante de honestidade".
posted by George Cassiel @ 11:40 da manhã  
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"Este era un cuco que traballou durante trinta anos nun reloxo. Cando lle chegou a hora da xubilación, o cuco regresou ao bosque de onde partira. Farto de cantar as horas, as medias e os cuartos, no bosque unicamente cantaba unha vez ao ano: a primavera en punto." Carlos López, Minimaladas (Premio Merlín 2007)

«Dedico estas histórias aos camponeses que não abandonaram a terra, para encher os nossos olhos de flores na primavera» Tonino Guerra, Livro das Igrejas Abandonadas

 
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