Agulhas ferventes
"Entrei como um actor entra em cena, sem nada que me despertasse a atenção, porque tudo sempre estivera lá, nos mesmos sítios desde o início, como os adereços sobre o palco deverão estar para que o actor não se perca, sem novidade, sem diferença, para que a indiferença provocada seja estímulo à concentração absoluta no corpo, no corpo do actor, no meu corpo quando entro em cena, em casa. Tudo no mesmo sítio, sem novidade, muito despida, quase sem móveis, apenas o suficiente e muita coisa espalhada pelo chão em pequenos montes, livros em montes que já não cabem nas prateleiras, roupa em montes, sacos em montes, uma cordilheira de objectos que forma a minha casa, percorri-a como um caminhante nas montanhas, mas sem o sabor da descoberta, do desafio da exploração, para não perder a concentração no meu objecto último, a secretária sob a janela do quarto – um dos poucos móveis, tal como a cama. A escrivaninha com vista para as árvores, para o destino que as agita e para o vento que empurra os transeuntes no passeio lá muito ao longe, a escrivaninha onde destruía papéis num fervor incontrolável, uma ânsia esfomeada de folhas brancas que permaneciam virgens, e voltava para os montes, procurando livros, ou comida, para me acalmar, a cordilheira acalmava-me, mas não me distraía! Entrei como um actor entra em cena e fechei a porta. Encostei-me com a sensação de segurança, ali ninguém me poderia fazer mal, nem os sonhos, nem eu próprio, ou talvez só eu próprio, ali era eu comigo, era o habitat da minha existência perturbada, mas era apenas eu, e eu era o meu único inimigo, o meu inseparável assassino, a minha própria destruição que não se pode arrancar como quem arranha a pele – não sai, nós não saímos de nós mesmo, apenas nos transformamos; e não sabia como fazê-lo ou não queria acreditar que fosse da forma que a carta do dia anterior me sugerira; essa seria uma transformação radical, a mudança última de pele, o arranhar final da própria alma. Seria o assassino de mim mesmo. Mas ali, em casa, nada me poderia fazer mal, só eu próprio – era o que temia. Encostado, retomando o ritmo de respiração normal, mais calmo, reencontrando-me, deixei os dedos saborearem os veios da madeira envelhecida da porta, estava de regresso. Um banho, roupa lavada, um livro e um café – como o regresso à normalidade se pode resumir a coisas tão simples, a uma satisfação das necessidades físicas e das de conforto intelectual; automedicara-me: para afastar os pensamentos que me perturbavam desde o dia anterior, precisava sentir alguma normalidade, ainda que a mesma normalidade que me perseguia e que me deixava insatisfeito com a vida, mas precisava urgentemente dela, para que não me perdesse e não me deixasse levar num percurso sem regresso, para não afunilar a vida, uma "afunivida" era o que vivia; automedicara-me um banho, roupa lavada e café com um livro, isso bastar-me-á, disse-o em voz alta, libertando os pensamentos. Reconheci a necessidade de uma mudança, ainda que ligeira, no pulsar da energia destruidora que me assolara no dia e na noite anterior. Bastar-me-á. Despi-me, escolhi roupa de entre um dos montes e deixei correr a água do duche até atingir a temperatura ideal, muito quente, quase no limite da resistência, a ferver para lavar profundamente, para me limpar de mim mesmo, para me desincarnar; entrei e deixei, durante muitos minutos, os jactos de água do duche furarem-me as costas, como agulhas ferventes, longos minutos (…) e o silêncio, também fervente, em longos e largos minutos, como se o tempo tivesse as medidas do espaço, (…) chovia em mim o calor do silêncio, num enorme volume de minutos, (…)"
por George Cassiel. |
Gostei de ler. Muito.